O aumento significativo da presença das termelétricas a gás nos EUA e recentemente também no Brasil é um fator preocupante. Não apenas porque, como qualquer outro combustível fóssil, o subproduto da queima do gás natural é o CO2, o que faz com que um número maior dessas unidades de produção elétrica contribua para agravar o efeito estufa, mas também pelo fato de o aumento da demanda ter levado a um crescimento da exploração não-convencional do gás, incluindo a chamada fratura hidráulica, ou fracking. Há uma variedade enorme de impactos associados a esta técnica, de contaminação do lençol freático à produção de sismos. Mas neste artigo, ao invés de abordar essa variedade de impactos, nos propomos a fazer uma crítica ao principal (pseudo-)argumento levantado para defender o uso do gás natural como fonte de energia: o de que, comparado a outras fontes fósseis, ele seria “menos poluente” ou de que ele poderia servir como uma “ponte” (“bridge fuel”) por supostamente produzir menores emissões.
Há algo no ar além do CO2
No que diz respeito a contribuir para o aquecimento global, há muito mais coisas no céu do que o dióxido de carbono (CO2). Outros gases de efeito estufa, isto é, substâncias que interagem com a radiação infravermelho que a Terra emite para o espaço podem contribuir significativamente para tornar o que já é grave, gravíssimo. É o caso do metano (CH4) e do óxido nitroso (N2O), gases que ocorrem na natureza em proporções muito pequenas, e dos halocarbonetos, que não existiam em nossa atmosfera até serem produzidos e emitidos pela humanidade. O metano é o principal subproduto da fermentação entérica, daí a pecuária responder por grande parte de suas emissões, mas também, por ser o principal componente do gás natural, é a substância mais relevante quando lidamos com as ditas emissões fugitivas.
É possível estabelecer uma relação entre a contribuição relativa desses gases para o aquecimento global e a contribuição do CO2, definindo uma grandeza (adimensional) conhecida como potencial de aquecimento global, ou GWP, da sigla em inglês. Esta grandeza depende da escala de tempo considerada, pois cada gás tem um tempo de residência diferente na atmosfera. O metano tem uma vida média na atmosfera de 12,4 anos, significativamente mais curta do que o CO2 e em virtude disso, seu efeito é muito intenso a curto prazo. De acordo com o 5º Relatório de Avaliação (AR5, Myhre et al. 2013) do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), o GWP-20 (potencial de aquecimento global na escala de 20 anos) para o metano, sem considerar feedbacks do ciclo do carbono, é igual a 84 (86 se tais mecanismos de retroalimentação forem computados), ou seja, cada molécula de metano lançada na atmosfera terá, passados 20 anos, contribuído diretamente 84 vezes (86 vezes, considerando-se os feedbacks) para o desequilíbrio energético planetário. Numa escala mais longa, esse efeito é menor, mas ainda assim muito significativo: o GWP-100 dessa substância é 28, sem incluir os feedbacks, ou 34, se incluirmos estes efeitos (IPCC, 2013).
Em virtude dessa propriedade, as emissões antrópicas de metano, mesmo este gás permanecendo em concentrações bem mais baixas do que o dióxido de carbono, têm contribuído significativamente para o aquecimento global. Ainda de acordo com o AR5, enquanto as concentrações de CO2 chegaram, em 2011, a 391 partes por milhão ou ppm (Estas concentrações devem ultrapassar de longe 400 ppm, na média anual, ao final de 2016), as concentrações de CH4 eram mais de 200 vezes menores, ficando, em 2011, em 1803 partes por bilhão (ou ppb, sendo 1 ppm = 1000 ppb). Como os valores pré-industriais de concentração de metano na atmosfera eram bem menores (722 ppb), o aumento desde então foi de impressionantes 150%. Essas concentrações alteradas contribuem com uma forçante radiativa de 0,48 W/m2, um valor equivalente a pouco mais de um quarto daquele associado ao excedente de CO2 (1,82 W/m2), o que não é nada desprezível (Como discutimos noutros textos do blog, forçante radiativa, ou forçamento radiativo, é uma medida do desequilíbrio energético provocado por algum agente, como gases de efeito estufa, aerossóis, mudança no uso do solo, isto é, a quantidade de energia por unidade de área e por unidade de tempo acrescentada – se positiva – ou subtraída – se negativa – no balanço energético global).
Gás natural: um “mal menor”?
As informações acima são importantes a fim de que não se compre acriticamente a ideia de que o gás natural é “mais limpo” ou “mais amigável para o clima” do que outras fontes fósseis de energia. Esta, obviamente, é uma conclusão decorrente de um fato: o de que, na queima, uma quantidade menor de CO2 é produzida, por unidade de energia, quando o combustível adotado é o gás natural. Para sermos mais precisos, segundo dados da Administração de Informações sobre Energia dos EUA (EIA 2016), as emissões de CO2 associadas à queima de gás natural são de 43,1% a 48,8% menores do que as de carvão betuminoso e antracito, respectivamente.
Ora, já é inaceitável trocarmos um combustível que produza emissões colossais de CO2 (o carvão em qualquer uma de suas versões) por outro, mesmo a queima deste resulte em emissões que sejam “apenas” a metade. Afinal, “meio colossal” continua a ser algo muito grande, especialmente quando a crise climática nos impõe cortes profundos, radicais e rápidos nas emissões deste gás. Mas quando as emissões fugitivas e o elevado potencial de aquecimento global do metano entram na conta, vê-se claramente que não faz sentido a tentativa de vendê-lo como algo “limpo”.
Segundo Alvarez et al. (2012), a taxa de vazamento de gás (desde a extração no poço até o usuário final) considerada pela Agência de Proteção Ambiental dos EUA (a EPA) é de 2,4%. Ora, considerando-se que 90% do gás natural é composto de metano e que o GWP-100 com feedbacks desta substância é 34, conclui-se que o efeito climático do gás natural, na escala de 100 anos, considerando-se as emissões fugitivas é nada menos que 71,3% maior do que ignorando-as. Na escala de 20 anos, então, já que o GWP-20 com feedbacks para o metano é 86, o efeito das emissões fugitivas é de quase triplicar (aumento de 184%) o impacto climático do gás natural, fazendo com que, a curto prazo, seu efeito seja maior do que o de qualquer forma de carvão, mesmo considerando esta estimativa da EPA (relativamente modesta) para a taxa de vazamento. A longo prazo (100 anos), seu impacto ainda assim permanece comparável ao do carvão (0,31 kg de CO2 por kWh para o gás natural versus 0,32 kg de CO2 por kWh para carvão betuminoso ou 0,35 kg de CO2 por kWh para antracito). Não é à toa que Alvarez et al. (2012) concluem que é inviável, como estratégia de mitigação, uma permuta de derivados de petróleo por gás natural como combustível veicular, dado que seriam necessários quase 300 anos (quando finalmente o efeito do metano seria significativamente diminuído) para que se pudesse contar com o benefício de uma forçante radiativa reduzida.
Enfim, o fracking
Até agora ele permanecia fora de nossa discussão e que tudo o que debatemos até o momento diz respeito ao gás natural de forma genérica, convencional ou não. Eis que entra o fracking e o dano para o clima associado ao gás natural se aprofunda de vez.
Como se não bastasse todo o conjunto de impactos que ampliam a vulnerabilidade dos sistemas naturais e humanos face as mudanças climáticas, especialmente o uso excessivo e a contaminação da água, recurso que se tornará cada vez mais valioso para consumo humano e produção alimentícia em um planeta aquecido, é preciso considerar que o fracking provavelmente já está levando a um aumento das emissões fugitivas.
Allen et al. (2013) mostraram que as emissões, especialmente de poços fraturados excedem significativamente as estimativas da EPA. SegundoGlancy (2013), os valores de emissões fugitivas de todas as formas de gás não-convencional excedem aqueles do gás convencional. No caso do gás de folhelho, ainda segundo este autor, as emissões fugitivas chegariam a ser 133% maiores. Karion et al. (2013)apontam porcentagens de emissões fugitivas da ordem de 8,9%.Schneising et al. (2014) mostram claramente que os inventários de emissões sobre duas regiões de grande produção de gás natural usando as técnicas de fratura hidráulica estavam sendo grandemente subestimadas e que emissões fugitivas da ordem de 9% e 10% ocorriam nos sítios estudados.
Para além dos demais impactos, portanto, o fracking torna o gás natural uma bomba climática terrível. Do ponto de vista do impacto em 100 anos, emissões fugitivas da ordem de 10% já seriam capazes de elevar o impacto climático deste combustível ao dobro do associado ao antracito e mais do dobro do associado a qualquer outra variedade de carvão. Com o elevado GWP-20, que chega a 86 sendo incluídos os feedbacks climáticos, o impacto de curto prazo do gás natural proveniente de fracking pode chegar a quase 5 vezes o impacto da queima do carvão mineral.
O surrealismo do gás natural e fracking no Brasil
A análise feita até aqui em geral mostra paralelos entre o gás natural e outras fontes fósseis e demonstrou-se claramente que, do ponto de vista climático, as contas em defesa do gás como alternativa simplesmente não fecham, especialmente quando se trata de gás não-convencional e de fracking. Este paralelo geralmente encontra sentido porque muitos países estão debatendo e aplicando uma política de incrementar o uso do gás natural como uma suposta “ponte” entre outras fontes fósseis, como o carvão, e as renováveis. O que se demonstra aqui é que essa tese da “ponte” (“bridge fuel”) é inteiramente falaciosa e que é necessário que os EUA e demais países desenvolvidos apostem imediatamente numa rápida e completa transição de suas matrizes energéticas, abandonando as fontes fósseis em seu conjunto.
Mas o que dizer de países em que a suposta “ponte” sequer tem um ponto de partida? Por exemplo, qual a justificativa de se referir ao gás natural como “menos poluente”, utilizada por exemplo pelo governador do Ceará Camilo Santana para defender redução da alíquota de ICMS para incentivar novas termelétricas a gás para seu estado, num contexto em que a presença do carvão (e também do óleo) na matriz brasileira é (felizmente) pequena? Quando sequer o falso debate de “substituir carvão por gás” é apresentado, já que não se cogita de forma alguma o fechamento das termelétricas a carvão no contexto do nefasto avanço das termelétricas a gás? É evidente, portanto, que neste caso a falácia é ainda maior e o avanço do gás natural e do fracking são ainda mais trágicos e injustificáveis do que nos EUA e outros países capitalistas centrais. Trata-se evidentemente de uma manobra das corporações de energia suja, bloqueando soluções energéticas justas e democráticas exatamente em países que têm vocação clara para uma matriz energética 100% isenta de carbono.
A conclusão a que se pode chegar é que é inadmissível que assistamos no Brasil, bem como em qualquer outro país cuja matriz não é dominada pelo carvão, ao crescimento do gás natural como suposta alternativa, especialmente em sendo sua produção baseada na fratura hidráulica. Mesmo que não se consiga romper imediatamente com o predomínio da lógica de mercado aplicada à geração de eletricidade no Brasil, expressa nos leilões de energia, é inadiável uma política de restringir a inscrição somente a fontes renováveis nesses leilões. O avanço das termelétricas, sejam a carvão, óleo ou gás, e os impactos das extrações desses combustíveis, incluindo seu impacto climático, precisam ser detidos.
Referências:
Allen, D. T.; Torres, V. M.; Thomas, J.; Sullivan, D. W.; Harrison, M.; Hendler, A.; Herndon, S. C.; Kolb, C. E.;Fraser, M. P.; Hill, A. D.; Lamb, B. K.; Miskimins, J.; Sawyer, R. F.; Seinfeld, J. H. (2013): Measurements of methane emissions at natural gas production sites in the United States Proc. Natl. Acad. Sci. U. S. A., 110 ( 44)17768– 17773, DOI: 10.1073/pnas.1304880110
Alvarez RA, Pacala SW, Winebrake JJ, Chameides WL, Hamburg SP (2012): Greater focus needed on methane leakage from natural gas infrastructure. Proc Natl Acad Sci USA 109(17), 6435–6440.
EIA (2016): Carbon Dioxide Emissions Coefficients, disponível em https://www.eia.gov/environment/emissions/co2_vol_mass.cfm.
Glancy, R.P. (2013): Quantifying Fugitive Emission Factors from Unconventional Natural Gas Production Using IPCC Methodologies. Disponível em http://www.ipcc-nggip.iges.or.jp/tsu/intern_report/TSU_InternshipReportRyan.pdf
IPCC, 2013: Climate Change 2013: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Fifth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change [Stocker, T.F., D. Qin, G.-K. Plattner, M. Tignor, S.K. Allen, J. Boschung, A. Nauels, Y. Xia, V. Bex and P.M. Midgley (eds.)]. Cambridge University Press, Cambridge, United Kingdom and New York, NY, USA, 1535 pp.
Karion, A., et al. (2013),Methane emissions estimate from airborne measurements over a western United States natural gas field, Geophys. Res. Lett., 40(16),4393–4397, doi:10.1002/GRL.50811.
Myhre, G., D. Shindell, F.-M. Bréon, W. Collins, J. Fuglestvedt, J. Huang, D. Koch, J.-F. Lamarque, D. Lee, B. Mendoza, T. Nakajima, A. Robock, G. Stephens, T. Takemura and H. Zhang (2013): Anthropogenic and Natural Radiative Forcing. In: Climate Change 2013: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Fifth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change [Stocker, T.F., D. Qin, G.-K. Plattner, M. Tignor, S.K. Allen, J. Boschung, A. Nauels, Y. Xia, V. Bex and P.M. Midgley (eds.)]. Cambridge University Press, Cambridge, United Kingdom and New York, NY, USA.
Schneising, O., J. P. Burrows, R. R. Dickerson, M. Buchwitz, M. Reuter,
H. Bovensmann (2014): Remote sensing of fugitive methane emissions from oil and gas production in North American tight geologic formations. Earth’s Future. DOI: 10.1002/2014EF000265.
Postado no Blog O que Você Faria Se Soubesse o que Sei por Alexandre Costa – Ph.D. em Ciências Atmosféricas, Professor Titular da Universidade Estadual do Ceará.
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