A mineração que empobrece o Brasil
As substâncias minerais abrangem desde a exploração de petróleo e gás natural até a extração de água, e são largamente empregadas nos mais diversos produtos utilizados diariamente. Sob esse enfoque, a atividade mineral deveria ter uma imagem muito positiva. No entanto, a imagem das atividades de extração mineral, ou especialmente das empresas mineradoras, está se tornando cada vez mais negativa. Se olharmos para os períodos de extração/exploração do ouro no Brasil – Minas Gerais, e na América do Sul – Peru, caberia a pergunta: o que a exploração do ouro, por séculos, trouxe de benefícios e desenvolvimento?
O aumento dessa imagem negativa, inclusive em nível mundial, está embasado em resultados que normalmente não recebem ênfase ou nem são divulgados. O normal é a divulgação bombástica de resultados positivos, restritos aos vultosos lucros, que passam a constituir propriedade privada de meia dúzia de ricos acionistas/proprietários, frequentemente residentes em país diverso do país onde os minerais são extraídos. Na prática, verifica-se que, por um lado, as mineradoras acumulam cada vez mais montanhas de dólares em lucros ao mesmo tempo em que, por outro lado, também acumulam cada vez mais tragédias humanas e ambientais, acopladas a cidades inchadas com precárias condições em serviços de infraestrutura, falta de saneamento básico, poluição da água, empobrecimento e, em alguns casos, até trabalho infantil, como verificado em regiões como Marabá, no Pará.
Em função desse conflito entre os resultados positivos e negativos da atividade de mineração nas mais diversas partes do mundo, cabe a pergunta: a atividade de mineração tem trazido benefícios? Se sim, benefícios para quem? No resultado final, a sociedade recebe benefícios ou custos? Da mesma forma, no final das contas, o Estado tem benefícios ou custos com a atividade de mineração?
Um dos aspectos a considerar é o nível de desenvolvimento local gerado pelas empresas mineradoras, principalmente através dos empregos e renda. Observando os exemplos históricos da exploração do Ouro em Minas Gerais e no Peru, parece que a resposta é relativamente fácil de ser obtida, praticamente observável a olho nu. Sobram localmente sociedades empobrecidas, enormes buracos, danos ambientais, e Estados igualmente empobrecidos e endividados. Outro aspecto importante, provavelmente o principal parâmetro para responder essas perguntas, encontra-se no pagamento de impostos, pois é através dos impostos que o Estado prestará os serviços de infraestrutura e investirá em geração de bem-estar para a comunidade local e de desenvolvimento em termos de país. Ou seja, a pergunta principal passa a ser: as mineradoras pagam impostos? Quando pagam, quanto pagam?
No Brasil, os impostos que incidem sobre os produtos minerais são basicamente o Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ), a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), o Programa de Integração Social e o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/PASEP), e o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços de transporte/comunicação (ICMS). Tendo em vista que a maior parte da extração mineral é exportada, vamos focar nos impostos que incidem na exportação de produtos minerais.
Os impostos PIS/PASEP, COFINS, ICMS e, adicionalmente, o Imposto de Exportação (IE) são imunes na exportação. Ou seja, as mineradoras não pagam nada de IE, ICMS, PIS/PASEP e COFINS sobre o que exportam. Sobra o IRPJ e a CSLL, que é a tributação sobre o lucro das mineradoras.
Uma das práticas cada vez mais comum, não só das grandes mineradoras, é a de abrir filiais em outros países, especialmente os denominados países “paraísos fiscais”. Dessa forma, a exportação passa por etapas intermediárias de circulação (transferência, normalmente só “no papel”) entre estabelecimentos da mesma empresa (mineradora), situados em diferentes países. Na verdade, o nome mais apropriado para os países “paraíso fiscal” seria o de “paraísos fisco-criminais”, pois exercem um papel fundamental na estrutura que permite a fuga, pelas grandes corporações, do pagamento de impostos nos países em que atuam.
Por exemplo: uma mineradora brasileira abre uma filial na Suíça e “transfere” o minério para a filial suíça. Óbvio que, na prática, esse minério não é transportado para as cordilheiras da Suíça para, a partir daí, ser vendido e novamente transportado cordilheira abaixo para ser entregue ao comprador final, que poderia ser, por exemplo, um comprador na China. Ou seja, na prática o ferro já é embarcado no Brasil num navio com destino à China, mas a Nota Fiscal faz uma transferência para a filial na Suíça, sendo que, no meio do caminho, o navio “recebe” a Nota Fiscal da venda da filial Suíça para o comprador na China.
O efeito dessa transferência “no papel” do minério para a filial da Suíça é o de que a empresa escolhe o valor a inserir nessa Nota Fiscal (pois não é uma operação de compra/venda), sem precisar declarar no Brasil o valor da venda para China, pois esse valor somente será declarado na Nota Fiscal emitida pela filial da Suíça destinada ao comprador na China. Apesar do minério ser embarcado no Brasil com destino à China, a venda ocorre da Suíça para China, pois “no papel” o minério saiu do Brasil para Suíça por transferência entre estabelecimentos da mesma empresa mineradora. Esse preço de transferência escolhido pela mineradora (normalmente inferior ao preço de venda – subfaturamento) é o que determina o lucro que a empresa vai apurar no Brasil, influindo diretamente nos dois impostos que sobraram para tributação, reduzindo ou anulando o IRPJ e a CSLL (impostos), e a CFEM (royalties). O resultado final (tributação sobre o valor da transferência, e não sobre a venda) normalmente é uma baixa ou nula tributação no país produtor do minério.
Agora que já vimos a circulação física (navio: Brasil-China) e a circulação “no papel” (Nota Fiscal: Brasil-Suíça-China) do minério, podemos comentar a circulação do dinheiro referente ao pagamento do minério exportado. O pagamento/dinheiro faz o caminho inverso (de regresso), mas seguindo o caminho “no papel” ocorrido na circulação do minério. Isso significa que o pagamento efetuado pelo comprador na China tem como destino a Suíça, e não o Brasil, país exportador. A filial (da mineradora brasileira) na Suíça recebe o valor da venda e envia para o Brasil somente o valor correspondente ao “preço de transferência” declarado pela mineradora brasileira por ocasião da exportação do minério.
Dessa forma, fica na Suíça a diferença entre o valor pago pelo comprador chinês e o valor de transferência escolhido pela mineradora brasileira. Em certa medida, se poderia dizer que é uma maneira “legal” de “roubar” do Brasil a riqueza decorrente da extração mineral. Esse valor da diferença entre o preço de venda e o preço de transferência (fictícia – “no papel”) deixa de ser tributado no Brasil, podendo gerar uma drástica redução ou até mesmo o zeramento do pagamento do IRPJ e CSLL.
Exemplos dessa nefasta prática das mineradoras podem ser verificados nesses dois estudos, um referente à maior mineradora do Brasil e o outro referente à maior mineradora do Peru: “Extração de recursos no Brasil – Faturamento comercial indevido no setor de mineração” e “La Gran Minería: ¿paga los impuestos que debería pagar? El caso Yanacocha”. Ambos estudos são facilmente localizáveis na internet através de um motor de busca, como o Google ou o DuckDuckGo.
O primeiro estudo, “Extração de recursos no Brasil – Faturamento comercial indevido no setor de mineração”[i], demonstra como a mineradora brasileira Vale S.A, utilizando o artifício das “transferências artificiais” do ferro para uma filial na Suíça, deixou de recolher, entre 2009 e 2015, em torno de 12 e meio bilhões de dólares a título de IRPJ e CSLL, aproximadamente 48 bilhões de reais. Considerando que o Bolsa Família,[ii] principal programa de assistência social do Brasil, representa em torno de 25 bilhões anuais, pode-se calcular que a Vale “embolsou” sozinha praticamente dois Bolsas Famílias através da filial Suíça nesse período. Além disso, também a título de comparação, o lucro da Vale no ano de 2017 foi de R$ 17,6 bilhões, e nos 21 anos de privatização foi de 320 bilhões[iii] (um Bolsa Família/país para Vale a cada ano).
O segundo estudo, “La Gran Minería: ¿paga los impuestos que debería pagar? El caso Yanacocha” [iv], versa sobre a maior mineradora de ouro do Peru e a terceira maior do mundo. Nos últimos anos, a expansão da China e outros países industrializados aumentou a demanda por matérias primas ao mesmo tempo em que muitos Estados e empresas buscavam proteger suas reservas com ouro frente a eventual enfraquecimento do dólar, resultando em aumentos expressivos no preço do ouro. Apesar desse ambiente internacional favorável, a mineradora peruana declarou prejuízo superior a 500 milhões de dólares no ano de 2013.
Além dessa drástica redução ou zeramento dos impostos, cabe adicionar, de forma rápida, a questão das Renúncias Fiscais (ou, como preferem os empresários, Benefícios Fiscais), que favorecem as mineradoras em detrimento do Estado e da sociedade. As mineradoras tem sua alíquota do Imposto de Importação (II) reduzida de 16% para 2% na importação de equipamentos usados na mineração. Quando a mineração é no Pará, tem ainda uma redução de 75% no IRPJ. As mineradoras também se beneficiam de Renúncias Fiscais que não são exclusivamente do setor, como manter os créditos de ICMS na exportação (que é isenta), distribuir lucros e dividendos aos proprietários/sócios sem pagamento de IRPF mesmo quando remetidos para o exterior, e descontar do IRPJ juros sobre o capital próprio. Como o Patrimônio Líquido das mineradoras é elevado, o volume de juros sobre o capital próprio é bem expressivo. Por exemplo, o minério de ferro extraído de Carajás, no Pará, com um faturamento de aproximadamente 20 bilhões de reais no ano de 2011, recolheu apenas R$ 30 milhões ao erário público, uma taxa de míseros 0,15%.
Visando não alongar a descrição, cabe citar por último a Contribuição Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM) e royalties, que buscam estabelecer uma contrapartida à exploração de produtos esgotáveis. No minério de ferro, a título de exemplo, a Austrália cobra entre 5% e 7,5% do valor na mina, China cobra 2% do valor de venda, Indonésia cobra 3% do valor de venda, e o Brasil cobra 2% do faturamento líquido. Com a utilização da estratégia de abrir uma filial na Suíça (ou outro paraíso fisco-criminal) para diminuir o valor do faturamento (manipulação dos preços), a mineradora brasileira também reduz drasticamente o valor da CFEM a recolher. Some-se a isso que, além de reduzir o valor do faturamento com a transferência fictícia para Suíça, reduzindo ou anulando o IRPJ, CSLL e CFEM, os valores restantes eventualmente devidos seguidamente ainda não são pagos, como se pode ver na reportagem “500 empresas devem R$ 392 bilhões à União; mineradora Vale lidera o ranking”, disponível em https://www.brasildefato.com.br/node/33203/ .
Também cabe registrar um breve comentário sobre a história da Vale, maior mineradora brasileira. Em 1942, Getúlio Vargas encampou as reservas de ferro da Itabira Iron Ore Company e criou a Companhia do Vale do Rio Doce, que se tornou uma das maiores empresas do país, com uma malha ferroviária de cerca de 2.000 quilômetros. Tornou-se objeto de apetite de grandes grupos econômicos nacionais e internacionais, e no governo Fernando Henrique Cardoso, em maio de 1997, foi privatizada/vendida pelo preço de 3,3 bilhões, valor considerado escandalosamente baixo (além do BNDES ter financiado/pago boa parte), pois a avaliação das reservas dos minérios poderia elevar o valor para aproximadamente 200 bilhões na época. Uma das razões alegadas para privatização era abater a dívida externa, mas o dinheiro foi empregado em gastos correntes e demandas parlamentares. Nos 21 anos de privatização, os proprietários/acionistas, que compraram por 3,3 bilhões usando recursos do BNDES, receberam nada menos que R$ 320 bilhões de lucros e dividendos!!!! Existe negócio pior que esse para sociedade brasileira?
Comparando o setor extrativo mineral com o setor de Petróleo e Gás, verifica-se uma notável diferença em termos de pagamento de impostos. Em 2008, a Petrobrás apurou lucro líquido de US$ 18,9 bilhões e a Vale de US$ 13,2 bilhões. No mesmo período, a Petrobras gerou arrecadação tributária indireta, mais royalties, de R$ 80 bilhões, enquanto a Vale, nos mesmos termos, gerou valores inferiores a R$ 1 bilhão (80 vezes menos, apesar do lucro ser somente 0,3 vezes menor)[v].
Concluindo, verifica-se que as mineradoras, apesar de explorarem patrimônio público de elevado valor, não renovável e de propriedade da sociedade (União), não pagam impostos nas exportações, recebem uma série de benefícios através das Renúncias Fiscais, e pagam, quando pagam, valores baixos a título de imposto de renda e compensação financeira pela exploração de recursos não renováveis. As mineradoras geram montanhas de dólares de lucro para meia dúzia de sócios/acionistas, normalmente no exterior, ao mesmo tempo em que geram “(sub)desenvolvimentos” regionais, “produzindo” locais poluídos, empobrecidos, e inclusive endividados quando se trata dos governos onde são efetuadas as explorações minerais.
Olhando por exemplo para a experiência de séculos de exploração de ouro nas “Minas Gerais” do Brasil, pode-se concluir que, se o país adotar hoje a mesma política pública de exploração mineral como a adotada nos séculos anteriores, o resultado da atual exploração das imensas jazidas de ferro, nióbio e, inclusive, petróleo trará os mesmos resultados para a sociedade brasileira que os obtidos com a exploração do ouro nos séculos anteriores: buracos, poluição, dívida pública, pobreza, elevada concentração de renda e riqueza, milhões de pobres e uns pouquíssimos ultra ricos (inclusive no exterior).
João Carlos Loebens é membro do Instituto de Justiça Fiscal (IJF) e do coletivo Auditores Fiscais pela Democracia (AFD).
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